ESPANHOL RAFAEL CAMARASA
O meu animal não é diferente dos outros. Não entende causas nem razões. De leis físicas que explicam, por exemplo, o teu rebolar quando caminhas. Vê que as tuas ancas se movem e curioso gosta de ver se te afastas e te perdes feita pérola entre pedras. Agora deixa o novelo de vísceras, com o qual brincava no meu interior, e observa uma gota de chuva deslizando no vidro. Nem desconfia que há forças que o fazem seguir esse curso: ama a sua imprevisível constituição com o mesmo mistério com que a odiará. Uma noite destas pode deixar que faças com a sua pele uma bolsa. Contudo se lhe perguntares o motivo não saberia o que te rugir ou miar. Se pretende alguma coisa são os teus joelhos e o tacto dos teus dedos no seu dorso. E, como eu, lamber-te-á as feridas, ainda que não possa explicá-las.
RESISTÊNCIA
Telefonou para dizer que me envia um poema pelo correio. “Não interessa se o vais ler. É o de menos”, explica-me. “Imagina-o apenas na sua viagem selado por máquinas infalíveis; classificado por funcionários conforme procedimentos e normas. No fundo de um saco sujo, entre publicidade e facturas, seguindo os trâmites de um mundo que repele por natureza. Não é como um raio de sol na bruma de um romance das Brontë?”. Hoje recebi o envelope com a sua franquia regulamentar, e no interior uma pequena folha de papel dobrada pela metade. É certo que estava em branco e não havia poema algum, porém não posso afirmar que nele faltasse poesia.
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