Certamente, você já leu alguma manchete de jornal em que a “ONU prevê guerras” na África ou no Oriente Médio em torno de fontes água doce, ou ainda ouviu o boato de que os “gringos” vão invadir a Amazônia, o maior reservatório de recursos hídricos do planeta. Pois é, se há um bordão bem conhecido na comunidade ambiental é aquele que versa sobre o potencial da água, “o petróleo do século 21”, causar conflitos de grandes proporções. Mas nas últimas semanas, opiniões divergentes têm ganhado destaque. Um simples levantamento feito pelo Instituto Internacional de Estocolmo sobre Água (IIEA) demonstrou que existem na verdade mais exemplos de cooperação do que conflitos em torno de grandes mananciais.
Em material divulgado há duas semanas, o instituto mostrou que, durante todo o século 20, trezentos acordos internacionais foram assinados para garantir uma gestão transfronteiriça de recursos hídricos. Neste mesmo período, apenas sete pequenos incidentes entre países foram contabilizados como resultados diretos da escassez de água.
A própria Organização das Nações Unidas (ONU) embarcou no discurso da paz e lançou o tema “Águas compartilhadas, oportunidades compartilhadas” como mote do Dia Internacional da Água (22 de março). Dados da organização mostram que existem no globo 263 bacias e 274 aqüíferos “internacionais”. Isso faz com que 75% de todas as nações do mundo dividam com seus vizinhos seus estoques de água. Veja na galeria de fotos abaixo exemplos de cursos d´água transfronteiriços.
“Mesmo o conflito entre Israel e Palestina, que muitas vezes é citado como um exemplo de disputa por recursos hídricos, tem como um pano de fundo questões políticas e religiosas”, argumenta o pesquisador Anton Earle, do IIEA.
À mesma conclusão chegou o membro da Associação Britânica de Ciência, Wendy Barnaby. Em artigo publicado na edição eletrônica da revista Nature, ele conta que ao tentar escrever um livro sobre as “guerras pela água” suas expectativas foram totalmente frustradas. Lançando mão de uma pesquisa ainda mais detalhada, publicada em 2003 no American Journal of Water Resources, Barnaby lembra que entre 1948 a 1999, de um total de 1.831 questões sobre bacias internacionais, 68% tiveram como resultado acordos pacíficos e apenas 28% causaram rusgas diplomáticas. Os 5% restantes tiveram resultados neutros.
“Países não entram em guerra por causa de água, eles resolvem suas necessidades hídricas através de comércio e acordos internacionais”, escreveu Barnaby em seu artigo.
Sua conclusão nasceu depois que ele buscou como primeira inspiração para o livro os países que seriam alvos óbvios da tão falada “guerra pela água”. Olhando para Israel, Egito e Jordânia, ele notou que mesmo com escassez, existe paz na gestão dos rios transfronteiriços. Como? Importando-se comida. Desde a década de 1960, argumenta Barnaby, quando a demanda de água nestes países se tornou bem maior que a oferta, os produtos que consomem grandes quantidades do recursos foram aos poucos sendo importados.
Cooperação no Brasil
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O Brasil, detentor de 12% da água doce do planeta, também pode ser considerado uma ilha de paz nesse cenário. É verdade que a Argentina preocupou-se quando o governo militar brasileiro resolveu construir a hidrelétrica de Itaipu na década de 1970. Dizia-se que Buenos Aires poderia ser inundada com a abertura das comportas daquela que se tornaria a maior usina do mundo.
Mas a despeito da retórica aquecida, a gestão da Bacia do Rio da Prata tornou-se um exemplo de cooperação entre países do Cone Sul, lembra o diretor da Agência Nacional de Águas (ANA), Benedito Braga. Existem acordos entre Brasil e Paraguai para a gestão de Itaipu. Com os argentinos, os paraguaios fazem administração compartilhada da hidrelétrica de Yacyretá.
“Hoje o conceito mais aceito é o de compartilhar benefícios advindos da água e não propriamente a água. O caminho não é somente a gestão das bacias transfronteiriças e sim no desenvolvimento conjunto de infraestrutura hidráulica e sua gestão compartilhada. A hidrelétrica de Itaipu é responsável por quase 100% da energia elétrica consumida no Paraguai. Até a recente posse do novo governo paraguaio nunca houve qualquer contestação do aproveitamento hidrelétrico. Parece que a reação paraguaia foi um ato subseqüente à posse do novo governo. Hoje está tudo pacificado”, comenta Braga.
Atualmente, a construção de hidrelétricas na Amazônia também tem causado certo estresse diplomático para o governo brasileiro. Após anunciar as obras das usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, a Bolívia reclamou que o alagamento no Brasil traria conseqüências a seu território. O Madeira é formado pela confluência dos rios Beni e Mamoré, em terras bolivianas.
Braga observa que o caso é único no mundo, pois geralmente são os países à jusante quem reclamam de seus vizinhos. Síria e Iraque reclamam da Turquia, Egito reclama de todos os países do Nilo à montante (Sudão, Etiópia, Burundi, Congo, Quenia, Ruanda, Tanzânia e Uganda), México reclama dos Estados Unidos pelo uso excessivo do Rio Colorado, e a Argentina reclamou por ocasião da construção de Itaipu na década de 1970.
“O governo brasileiro foi surpreendido por esta demanda única no mundo”, afirma o diretor da ANA, sobre a posição boliviana. “Eu suspeito que há um interesse da Bolívia em utilizar os conhecimentos brasileiros para desenvolver uma hidrelétrica no trecho bi-nacional do rio Madeira. Não existe conflito de uso da água. Toda essa pressão ocorre no sentido conquistar um apoio técnico e financeiro do Brasil a esta hidrelétrica”, analisa.
Conservação de olho no clima
Na África, onde também muitas guerras foram previstas, o quadro não é diferente, aponta Earle, do IIEA. No continente, já existem, há anos, bons exemplos de cooperação. Ele estudou em particular o caso do acordo assinado em 2002 entre Suazilândia e Moçambique, no qual os países se comprometeram a preservar o rio Maputo. O inovador deste acordo é que ele já leva em conta as possíveis reduções no nível da água por conta da variação climática. “As mudanças climáticas certamente vão exigir mais flexibilidade institucional entre os países, pois haverá mais secas em algumas regiões e mais enchentes em outras”, pondera o pesquisador.
Neste cenário a importância de parques nacionais e reservas para a preservação de nascentes poderá ser estratégica . Earle lembra que a importância dos serviços ambientais prestados por bacias hidrográficas no abastecimento de cidades ou na sustentação de setores, como o de turismo, deve ser reconhecida pelos governos.
Ele cita o caso da disputa ocorrida recentemente entre Botsuana e Namíbia, em torno da água do rio Okavango. Decidida a construir um canal que drenaria parte da água da bacia, a Namíbia foi alertada por entidades ambientalistas de que estava desrespeitando a convenção de Ramsar, que protege áreas úmidas em todo mundo. O Okavango é um dos poucos rios na África que deságua em terra. A região, um pântano rico em vida selvagem abriga a reserva de Moremmi, que recebe milhares de turista ao longo do ano. No fim, a feição natural do rio foi protegida. Mais um caso de cooperação, aponta Earle.
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