(Rabiscos em papel de pão, encontrados nos trapos do homem suicidado na Avenida São João, ao sol das duas da tarde, debaixo de um caminhão.)
Depois do tapa na bunda
ninguém nunca me avisou
por pena nem por amor
que da vida eu mereceria
didático espancamento
ensino em forma de dor.
Na dor do primeiro ar
por pena ou por amor
ninguém pôde me falar
que pela vida afora
doía pra respirar.
Asma, ronco e suspiro
é nisso que se resume
minha função pulmonar.
Por pena ou por amor
esqueceram de me contar
que quando a dor vai embora
tá doidinha pra voltar.
Por pena ou por amor
deixaram de me dizer
quando me consolaram
do grito que me assustou
que a partir daquela hora
comigo gritariam só
para domesticar melhor.
No primeiro chifre que tive
por amor ou por dó
disseram pra relaxar
que a culpa era da vadia
eu tinha que me aprumar.
Depois, a boca pequena,
puseram-se a me insultar:
- Bem feito praquele corno,
merece o que a vida dá!
Quando numa confusão
acabei levando tiro
correram pra me dizer
por pena ou por amor:
- Coragem, tu vai viver!
mas quando recuperei
gritaram já corrigido:
-safado, tu inda tá vivo?
Por pena ou por amor,
falaram do paraíso
que muito me interessou
mas eu nunca me esqueço
que por amor ou por pena
muita gente me enganou.
Por mais uma gentileza
ninguém me revelou
mas eu cheguei na certeza:
nasci sem saber pra quê,
vivi sem saber pra quem,
ninguém me segura aqui.
E como eu tenho por sina
doer de que jeito for
não ligo mais pra essa vida
ao partir, parto sem pena
ao partir, parto sem dor
Fonte: Crônica do Dia
Nenhum comentário:
Postar um comentário