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segunda-feira, 3 de junho de 2013

A esposa


Rio de Janeiro

Às vezes, nessas noites frias e enevoadas
Onde o silêncio nasce dos ruídos monótonos e mansos
Essa estranha visão de mulher calma
Surgindo do vazio dos meus olhos parados
Vem espiar minha imobilidade.

E ela fica horas longas, horas silenciosas
Somente movendo os olhos serenos no meu rosto
Atenta, à espera do sono que virá e me levará com ele.
Nada diz, nada pensa, apenas olha - e o seu olhar é como a luz
De uma estrela velada pela bruma.
Nada diz. Olha apenas as minhas pálpebras que descem
Mas que não vencem o olhar perdido longe.
Nada pensa. Virá e agasalhará minhas mãos frias
Se sentir frias suas mãos.

Quando a porta ranger e a cabecinha de criança
Aparecer curiosa e a voz clara chamá-la num reclamo
Ela apontará para mim pondo o dedo nos lábios
Sorrindo de um sorriso misterioso
E se irá num passo leve
Após o beijo leve e roçagante...

Eu só verei a porta que se vai fechando brandamente...
Ela terá ido, a esposa amiga, a esposa que eu nunca terei.

Vinicius de Moraes

A cidade em progresso


A cidade mudou. Partiu para o futuro
Entre semoventes abstratos
Transpondo na manhã o imarcescível muro
Da manhã na asa dos DC-4s

Comeu colinas, comeu templos, comeu mar
Fez-se empreiteira de pombais
De onde se vêem partir e para onde se vêem voltar
Pombas paraestatais.

Alargou os quadris na gravidez urbana
Teve desejos de cúmulos
Viu se povoarem seus latifúndios em Copacabana
De casa, e logo além, de túmulos.

E sorriu, apesar da arquitetura teuta
Do bélico Ministério
Como quem diz: Eu só sou a hermeneuta
Dos códices do mistério...

E com uma indignação quem sabe prematura
Fez erigir do chão
Os ritmos da superestrutura
De Lúcio, Niemeyer e Leão.

E estendeu ao sol as longas panturrilhas
De entontecente cor
Vendo o vento eriçar a epiderme das ilhas
Filhas do Governador.

Não cresceu? Cresceu muito! Em grandeza e miséria
Em graça e disenteria
Deu franquia especial à doença venérea
E à alta quinquilharia.

Tornou-se grande, sórdida, ó cidade
Do meu amor maior!
Deixa-me amar-te assim, na claridade
Vibrante de calor!
Vinicius de Moraes

A cidade antiga



Houve tempo em que a cidade tinha pêlo na axila
E em que os parques usavam cinto de castidade
As gaivotas do Pharoux não contavam em absoluto
Com a posterior invenção dos kamikazes
De resto, a metrópole era inexpugnável
Com Joãozinho da Lapa e Ataliba de Lara.

Houve tempo em que se dizia: LU-GO-LI-NA
U, loura; O, morena; I, ruiva; A, mulata!
Vogais! tônico para o cabelo da poesia
Já escrevi, certa vez, vossa triste balada
Entre os minuetos sutis do comércio imediato
As portadoras de êxtase e de permanganato!

Houve um tempo em que um morro era apenas um morro
E não um camelô de colete brilhante
Piscando intermitente o grito de socorro
Da livre concorrência: um pequeno gigante
Que nunca se curvava, ou somente nos dias
Em que o Melo Maluco praticava acrobacias.

Houve tempo em que se exclamava: Asfalto!
Em que se comentava: Verso livre! com receio...
Em que, para se mostrar, alguém dizia alto:
"Então às seis, sob a marquise do Passeio..."
Em que se ia ver a bem-amada sepulcral
Decompor o espectro de um sorvete na Paschoal

Houve tempo em que o amor era melancolia
E a tuberculose se chamava consumpção
De geométrico na cidade só existia
A palamenta dos ioles, de manhã...
Mas em compensação, que abundância de tudo!
Água, sonhos, marfim, nádegas, pão, veludo!

Houve tempo em que apareceu diante do espelho
A flapper cheia de it, a esfuziante miss
A boca em coração, a saia acima do joelho
Sempre a tremelicar os ombros e os quadris
Nos shimmies: a mulher moderna... Ó Nancy! Ó Nita!
Que vos transformastes em dízima infinita...

Houve tempo... e em verdade eu vos digo: havia tempo
Tempo para a peteca e tempo para o soneto
Tempo para trabalhar e para dar tempo ao tempo
Tempo para envelhecer sem ficar obsoleto...
Eis por que, para que volte o tempo, e o sonho, e a rima
Eu fiz, de humor irônico, esta poesia acima.

Vinicius de Moraes

A brusca poesia da mulher amada (III)


Rio de Janeiro



A Nelita

Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado
Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido
herói sem mácula
Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a
bilirrubina
Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco
quilos
Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as
confidências
E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas
Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia.
Eis que se anuncia de modo sumamente grave
A vinda da mulher amada, de cuja fragrância
já me chega o rastro.
É ela uma menina, parece de plumas
E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos
ventos
Empós meu canto. É ela uma menina.
Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina
Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes
Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos
Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos
Para cantar seus réquiens e os falsos profetas
A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras.
Mas nada a detém; ela avança, rigorosa
Em rodopios nítidos
Criando vácuos onde morrem as aves.
Seu corpo, pouco a pouco
Abre-se em pétalas... Ei-la que vem vindo
Como uma escura rosa voltejante
Surgida de um jardim imenso em trevas.
Ela vem vindo... Desnudai-me, aversos!
Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos!
Alvoroçai-me, auroras nascituras!
Eis que chega de longe, como a estrela
De longe, como o tempo
A minha amada última!



Rio de Janeiro, 1950.

Vinicius de Moraes


A brusca poesia da mulher amada (II)

Rio de Janeiro

A mulher amada carrega o cetro, o seu fastígio
É máximo. A mulher amada é aquela que aponta para a noite
E de cujo seio surge a aurora. A mulher amada
É quem traça a curva do horizonte e dá linha ao movimento dos
astros.
Não há solidão sem que sobrevenha a mulher amada
Em seu acúmen. A mulher amada é o padrão índigo da cúpula
E o elemento verde antagônico. A mulher amada
É o tempo passado no tempo presente no tempo futuro
No sem tempo. A mulher amada é o navio submerso
É o tempo submerso, é a montanha imersa em líquen.
É o mar, é o mar, é o mar a mulher amada
E sua ausência. Longe, no fundo plácido da noite
Outra coisa não é senão o seio da mulher amada
Que ilumina a cegueira dos homens. Alta, tranqüila e trágica
É essa que eu chamo pelo nome de mulher amada.
Nascitura. Nascitura da mulher amada
É a mulher amada. A mulher amada é a mulher amada é a mulher
amada
É a mulher amada. Quem é que semeia o vento? - a mulher amada!
Quem colhe a tempestade? - a mulher amada!
Quem determina os meridianos? - a mulher amada!
Quem a misteriosa portadora de si mesma? A mulher amada.
Talvegue, estrela, petardo
Nada a não ser a mulher amada necessariamente amada
Quando! E de outro não seja, pois é ela
A coluna e o gral, a fé e o símbolo, implícita
Na criação. Por isso, seja ela! A ela o canto e a oferenda
O gozo e o privilégio, a taça erguida e o sangue do poeta
Correndo pelas ruas e iluminando as perplexidades.
Eia, a mulher amada! Seja ela o princípio e o fim de todas as coisas.
Poder geral, completo, absoluto à mulher amada!

Vinicius de Moraes

A brusca poesia da mulher amada


Rio de Janeiro

Longe dos pescadores os rios infindáveis vão morrendo de sede lentamente...
Eles foram vistos caminhando de noite para o amor - oh, a mulher amada é como a fonte!
A mulher amada é como o pensamento do filósofo sofrendo
A mulher amada é como o lago dormindo no cerro perdido
Mas quem é essa misteriosa que é como um círio crepitando no peito?
Essa que tem olhos, lábios e dedos dentro da forma inexistente?

Pelo trigo a nascer nas campinas de sol a terra amorosa elevou a face pálida dos lírios
E os lavradores foram se mudando em príncipes de mãos finas e rostos transfigurados...

Oh, a mulher amada é como a onda sozinha correndo distante das praias
Pousada no fundo estará a estrela, e mais além.

Vinicius de Moraes

A bomba atômica


e=mc2
Einstein
Deusa, visão dos céus que me domina
...tu que és mulher e nada mais!
(Deusa, valsa carioca.)



I



Dos céus descendo
Meu Deus eu vejo
De pára-quedas?
Uma coisa branca
Como uma fôrma
De estatuária
Talvez a fôrma
Do homem primitivo
A costela branca!
Talvez um seio
Despregado à lua
Talvez o anjo
Tutelar cadente
Talvez a Vênus
Nua, de clâmide
Talvez a inversa
Branca pirâmide
Do pensamento
Talvez o troço
De uma coluna
Da eternidade
Apaixonado
Não sei indago
Dizem-me todos
É A BOMBA ATÔMICA.

Vem-me uma angústia.

Quisera tanto
Por um momento
Tê-la em meus braços
A coma ao vento
Descendo nua
Pelos espaços
Descendo branca
Branca e serena
Como um espasmo
Fria e corrupta
Do longo sêmen
Da Via Láctea
Deusa impoluta
O sexo abrupto
Cubo de prata
Mulher ao cubo
Caindo aos súcubos
Intemerata
Carne tão rija
De hormônios vivos
Exacerbada
Que o simples toque
Pode rompê-la
Em cada átomo
Numa explosão
Milhões de vezes
Maior que a força
Contida no ato
Ou que a energia
Que expulsa o feto
Na hora do parto.



II



A bomba atômica é triste
Coisa mais triste não há
Quando cai, cai sem vontade
Vem caindo devagar
Tão devagar vem caindo
Que dá tempo a um passarinho
De pousar nela e voar...
Coitada da bomba atômica
Que não gosta de matar!

Coitada da bomba atômica
Que não gosta de matar
Mas que ao matar mata tudo
Animal e vegetal
Que mata a vida da terra
E mata a vida do ar
Mas que também mata a guerra…
Bomba atômica que aterra!
Pomba atônita da paz!

Pomba tonta, bomba atômica
Tristeza, consolação
Flor puríssima do urânio
Desabrochada no chão
Da cor pálida do helium
E odor de rádium fatal
Lœlia mineral carnívora
Radiosa rosa radical.

Nunca mais, oh bomba atômica
Nunca, em tempo algum, jamais
Seja preciso que mates
Onde houve morte demais:
Fique apenas tua imagem
Aterradora miragem
Sobre as grandes catedrais:
Guarda de uma nova era
Arcanjo insigne da paz!



III









Bomba atômica, eu te amo! és pequenina
E branca como a estrela vespertina
E por branca eu te amo, e por donzela
De dois milhões mais bélica e mais bela
Que a donzela de Orleans; eu te amo, deusa
Atroz, visão dos céus que me domina
Da cabeleira loura de platina
E das formas aerodivinais
- Que és mulher, que és mulher e nada mais!
Eu te amo, bomba atômica, que trazes
Numa dança de fogo, envolta em gazes
A desagregação tremenda que espedaça
A matéria em energias materiais!
Oh energia, eu te amo, igual à massa
Pelo quadrado da velocidade
Da luz! alta e violenta potestade
Serena! Meu amor, desce do espaço
Vem dormir, vem dormir no meu regaço
Para te proteger eu me encouraço
De canções e de estrofes magistrais!
Para te defender, levanto o braço
Paro as radiações espaciais
Uno-me aos líderes e aos bardos, uno-me
Ao povo, ao mar e ao céu brado o teu nome
Para te defender, matéria dura
Que és mais linda, mais límpida e mais pura
Que a estrela matutina! Oh bomba atômica
Que emoção não me dá ver-te suspensa
Sobre a massa que vive e se condensa
Sob a luz! Anjo meu, fora preciso
Matar, com tua graça e teu sorriso
Para vencer? Tua enérgica poesia
Fora preciso, oh deslembrada e fria
Para a paz? Tua fragílima epiderme
Em cromáticas brancas de cristais
Rompendo? Oh átomo, oh neutrônio, oh germe
Da união que liberta da miséria!
Oh vida palpitando na matéria
Oh energia que és o que não eras
Quando o primeiro átomo incriado
Fecundou o silêncio das Esferas:
Um olhar de perdão para o passado
Uma anunciação de primaveras!




Vinicius de Moraes

A Berlim


Rio de Janeiro

Vós os vereis surgir da aurora mansa
Firmes na marcha e uníssonos no brado
Os heróicos demônios da vingança
Que vos perseguem desde Stalingrado.

As mãos queimadas do fuzil candente
As vestes podres de granizo e lama
Vós os vereis surgir subitamente
Aos heróicos prosélitos do Drama.

De início mancha tateante e informe
Crescendo às sombras da manhã exangue
Logo o vereis se erguer, o Russo enorme
Sob um sol rubro como um punho em sangue.

E ao seu avanço há de ruir a Porta
De Brandemburgo, e hão de calar os cães
E então hás de escutar, Cidade Morta
O silêncio das vozes alemãs.



Rio de Janeiro, 1945.


às vésperas da queda de Berlim
Vinicius de Moraes

A ausente



Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranqüilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...


Vinicius de Moraes 

A anunciação


Montevidéu

Virgem! filha minha
De onde vens assim
Tão suja de terra
Cheirando a jasmim
A saia com mancha
De flor carmesim
E os brincos da orelha
Fazendo tlintlin?
Minha mãe querida
Venho do jardim
Onde a olhar o céu
Fui, adormeci.
Quando despertei
Cheirava a jasmim
Que um anjo esfolhava
Por cima de mim...

Vinicius de Morais