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sábado, 5 de maio de 2018

Conto Lá vem o sol







Zezé corria atrás da bola junto com seus novos amigos. Estava muito feliz. Mas nem sempre fora assim.
Abandonado pela mãe alcoólatra, logo após o nascimento, viveu os primeiros anos de vida em um orfanato, na periferia da cidade de São Paulo.
Aos sete anos, por meio de uma tramoia, foi levado por um casal, responsável por várias crianças na mesma condição.
Com rapidez foi treinado para mendigar em faróis. Pedia esmolas em um dos pontos explorados pelos pais.
Não era uma vida fácil. Viviam nas imediações de um lixão. Pouca comida, falta de higiene e tabefes diários eram a paga pelos “serviços” prestados.
Ele era um dos que mais arrecadavam, pois tinha um belo rosto e um lindo sorriso, apesar da sujeira. A pele negra, em contraste com o cabelo avermelhado, herança da mãe. Largas e grandes bochechas se harmonizavam com os olhos grandes, arredondados.
Para ele e os irmãos não existia escola, mas conhecia o dinheiro, números e era bom em identificar as letras.
Aprendera com os mais velhos a “garfar” algumas moedas, conseguindo esconder alguns míseros Reais. Ele tinha medo, pois um dos meninos fora pego roubando e espancado na frente de todos, como exemplo.
Foi em um domingo que aconteceu o inesperado. Já era a hora da recolha quando um policial abordou seu “pai”, algemando-o. Zezé não pensou duas vezes. Esgueirou-se pelos curiosos que assistiam à cena, escondendo-se atrás de parte de um muro.
Quando o carro de polícia deixou a área, ele correu na direção oposta, como nunca havia feito na vida. Sabia, pelas conversas com os mais velhos, que daquele lado ficavam as casas altas.
Durante dois dias caminhou, confiante de que dias melhores viriam. A fome era sua companheira. Conseguira um pedaço de pão duro, nada mais. O dinheiro escondido ficara no barraco.
Por mais estranho que parecesse, não sentia medo. No terceiro dia de caminhada avistou as casas altas. Sorriu. Ele conseguira.
A noite ia alta quando se aproximou de um prédio, com escadaria frontal. Uma única luminária iluminava o antigo letreiro. Com esforço ele leu, Maróco. Achou muito estranho o nome.
Várias pessoas ocupavam as escadas, como se fossem camas dispostas cabeça a cabeça. Sem fazer barulho, passou pelas dos degraus mais baixos, indo até a coluna da esquerda. Elas eram duas, largas o suficiente para sustentar a enorme marquise.
Cansado, aconchegou-se a ela. Em menos de um minuto, dormiu.
Foi acordado pelos gritos:
- Aí, neguinho do cacete. Quem disse que você “pódi dormi” no meu lugar. Sai logo daí seu “fio” de uma égua - a fala era pastosa.
Zezé olhou para a figura maltrapilha à frente. Tinha numa das mãos uma garrafa de pinga pela metade e, na outra, um grosso pedaço de sarrafo.
- Sai daí seu bosta antes que eu “estore” sua cabeça com uma paulada.
Ele não se mexia. O medo o paralisara.
- Não “tá” me ouvindo moleque?
Uma voz se fez presente, vindo de um ponto mais alto.
- O que você está aprontando Marcão? Por que está aos berros? Já não lhe disse que não quero bagunça aqui no pedaço?
- “Vá” se “daná” você também “Diretô”. Pra mim não importa o que ocê “falô” ou não. ‘”Tô” me cagando pra o que ocê fala.
O Diretor, como era conhecido por todos dali, desceu devagar, com muita dificuldade, parando ao lado de Marcão, que balançava o corpo como se estivesse em um barco no mar.
- Repete o que você falou.
- “Tô” me... – não completou a frase.
O velho porrete do Diretor acertou-lhe a cabeça, deixando-o desacordado.
- Você dois, levem esse traste até o viaduto e o joguem lá para baixo - ele virou-se para o garoto.
- Não precisa ter medo. Esse animal não volta mais aqui. Posso saber o seu nome?
- Zezé - sua voz quase não saiu. Tinha os olhos arregalados.
Com esforço, sentou-se ao lado do menino. - Posso saber Zezé do quê?
- Zezé Bochecha. É assim que os meus irmãos me chamam.
- Certo. Então é assim que iremos te chamar aqui – ele esticou a mão para o garoto que o cumprimentou abrindo um sorriso.
- Posso fazer uma pergunta?
- Claro que pode, Bochecha. Pergunte.
- O que “é” esses ferro na sua perna?
- O que são? Isto foi um acidente. Eles ajudam a minha perna a sarar. Colar os ossos. Parece uma gaiola né?
- Sim, parece mesmo. Deve doer bastante.
- Um pouco, mas só vai melhorar desse jeito.
- Vou torcer pra que melhore.
- Obrigado meu novo amigo. Agora vamos tentar dormir, pois atrapalhamos os outros com a nossa conversa. Boa noite Zezé Bochecha.
- Boa noite - Ele encostou a cabeça no braço do seu defensor, dormindo a seguir.
O Diretor demorou muito para dormir. A lembrança de sua família e de seus filhos, há muito tempo perdidos, fez com que lágrimas aflorassem. Ele sussurrou:
- Com os outros, eu não pude. Mas você irá. Na primavera vou levá-lo para conhecer o parque.
Decorridos seis meses, todos na comunidade, das escadarias do Maróco, tratavam Bochecha como filho do Diretor. Ele crescera uns bons centímetros.
Seu novo tutor fazia questão de ensinar-lhe todo o necessário para sobreviver nas ruas, mas não se descuidava do básico. De seu modo, alfabetizou-o. Com um atlas surrado, mostrou-lhe os continentes, os países, os povos e as estações climáticas.
Ele demonstrava ser um ótimo aluno. Aprendia tudo muito rápido.
Era uma noite quente. O calor dificultava o sono. Os dois estavam encostados na coluna, olhando as estrelas.
- Sabe Bochecha, falta pouco tempo para a chegada da primavera. Lembra dela?
- Sim, a estação das flores.
- Isso, meu garoto. E eu quero realizar um sonho que há muito tempo não pude realizar.
- Qual era?
- Levar meus filhos para brincar e correr no parque - enxugou os olhos. - Mas vou levar você até lá.
Bochecha abriu um sorriso enorme.
- É sério? Mas, e sua perna?
- Está melhorando.
Porém a realidade era bem diferente do que ele queria. O cheiro da gangrena começava a sobrepujar o odor do corpo. As marcas arroxeadas subiam em direção à virilha.
Faltava uma semana para a mudança da estação. Naquele dia o Diretor não conseguiu se levantar. Fortes dores e uma febre alta o prostraram na escada.
Pediu aos amigos que o carregassem até a coluna, onde Bochecha havia se escondido, com expressão de choro.
Após fitá-lo por alguns segundos, apagou o sulco feito em seu rosto pelas lágrimas, abraçando-o.
- Preste atenção. Se por alguma razão eu não puder ir - uma forte pontada não deixou que concluísse a frase.
- Você não vai. Eu sei. Sua perna está ruim.
Tentando parecer firme, fez carinho em seus cabelos. - Não se preocupe Bochecha, isto é passageiro. Logo estarei bom.
- Eu não acredito. Tenho medo que você morra.
- Alguma vez eu menti para você? Pode ter certeza. Não vou morrer. Nunca.
- Você jura? - Sua voz estava embargada.
Com esforço para não chorar também, confirmou:
- Juro – e apertou-o contra o peito. - Lembra da música que eu lhe ensinei?
- Sim, dos Beatles.
- Isso, “Lá vem o Sol”. E não esqueça. Quando estiver no parque, deve cantá-la para saudar a primavera.
- Eu farei, pode deixar - abraçou-o, chorando muito.
Chegara o dia. Era primavera.
Muito debilitado, o Diretor pediu que buscassem Clotilde. Ela tinha um salão de cabeleireiros, próximo à agência do correio.
- Aquele travesti?
- Sim. E vá o mais rápido possível.
Ela chegou fazendo barulho nos saltos, mas ao vê-lo naquela condição, inquietou-se:
- Meu querido irmão – apertou-lhe as mãos.
- Por favor, fale baixo. Não quero que o garoto escute - ela olhou para o outro lado das escadarias. - Pela nossa mãe, você vai prometer que fará tudo o que vou lhe pedir.
- Sim, prometo - as lágrimas borravam a sua forte maquiagem.
- Quero que leve o Zezé Bochecha, esse é o nome do menino, para o salão. Dê-lhe um bom banho, corte-lhe os cabelos e compre roupa para ele. Você ainda é amiga do taxista?
- Eu moro com ele.
- Perfeito. Após deixar Bochecha nos trinques... - tentou rir, mas não conseguiu. A dor era angustiante. - peça para o seu amigo o levar até o parque Ibirapuera.
- Sim, pode deixar que farei tudo como está me pedindo.
Ele retirou do bolso um bolo de dinheiro.
- Isso deve dar para os gastos.
Era muito mais que o necessário.
- Não precisa meu irmão.
- Pegue. Eu não usarei mais.
Ele fitou-a, apertando-lhe a mão. - Obrigado.
- Tragam o Zezé.
O menino aproximou-se, olhar fixo na mulher desconhecida.
- Bochecha, esta é a Clotilde. Uma grande amiga minha.
Ele cumprimentou-a.
- Como não vou poder ir desta vez com você ao parque, ela irá providenciar tudo para que você vá.
Ele tinha a expressão meio confusa - você vai comigo?
Ela agachou-se. - Não querido, você irá de carro com um amigo meu.
Virando-se para o Diretor, perguntou:
- Você não consegue mesmo ir comigo?
Com um esforço quase acima de suas possibilidades, sorriu para Zezé.
- Desta vez não. Mas pode ter certeza de que estaremos juntos nas próximas. Abraçaram-se.
Segurando na mão de Clotilde, Zezé foi para o salão.
Era outro menino. Rosto lavado, cabelos curtinhos. Camisa e bermudas de surfista, tênis com luzinhas que acendiam quando pisava mais forte e um relógio de led.
Falta muito para chegar? – Sentara-se no banco traseiro do táxi.
- Não Zezé. Só um pouco. Não esqueça. Quando for seis horas da tarde eu venho te buscar.
Ele não sabia mais para onde olhar. Fazia cinco minutos que chegara ao parque e ainda estava abismado com a beleza.
Sem saber o porquê, decidiu caminhar em direção ao lago. Num gramado próximo, viu várias crianças de seu tamanho brincando. Sentou-se, observando-as.
Uma das orientadoras do grupo, percebendo-lhe o interesse, foi até ele, puxando conversa:
- Oi. Meu nome é Sônia. E o seu?
- Eu sou Zezé, conhecido como Zezé Bochecha.
Ela sorriu.
- Muito prazer. Está sozinho? Cadê os seus pais?
Hesitante com a pergunta, olhou para o lago.
- Vim ver a primavera no parque. Quando for seis horas tenho que ir embora. Foi assim que  combinei com o amigo da amiga do Diretor.
- Entendi. É uma escola também?
Ele não respondeu. Apenas olhou-a.
A outra orientadora, Sarah, reunia o grupo.
- Você trouxe lanche Zezé?
Ele balançou a cabeça em negativa.
- Isso não é bom. Um garoto forte e em fase de crescimento não pode ficar sem comer. Quer lanchar conosco?
- Quero - sorriu para ela, encantando-a.
Foi apresentado ao grupo, que de pronto aceitou-o como um novo amigo.
A comida era farta e a sua fome também. Quando todos já estavam saciados ele pediu mais um lanche e um pedaço de bolo com refrigerante.
Nunca se sentira tão contente. Todos começaram a cantar. Não conhecia as músicas, mas acompanhava com palmas.
De repente agitou-se, levantando-se:
- Tenho que cantar uma música - lembrou-se. - Vocês sabem cantar “Lá vem o Sol”?
Um sonoro sim, foi a resposta.
Com vergonha ele começou, seguido das crianças. Enquanto cantavam, ele via em seus pensamentos o rosto do Diretor.
A cantoria continuou. Era pura diversão.
Bochecha foi até onde Sônia e Sarah, sentadas na grama, conversavam.
- Posso fazer uma pergunta?
- Claro, Zezé. Fique à vontade.
- Os meus novos amigos e amigas são orientais?
- Não. Por que você pensou que fossem?
- É que o Diretor me ensinou sobre os povos. E disse que os nascidos no oriente têm os olhos puxados.
Ambas sorriram.
- Agora entendi a razão da sua pergunta. Não Zezé, não são orientais. Eles são Down. Já ouviu falar da Síndrome de Down?
Um dos garotos pegou uma bola, chamando todos: - Vamos jogar?
- Nunca ouvi. Agora vou jogar futebol - saiu correndo, tropeçando e rindo ao mesmo tempo.
Sônia comentou com a amiga.
- Ele é um doce de criança.
- Sim. Muito fofo. Mas você não acha estranho ele aqui sozinho. Sem bolsa, sem lanche?
- Acho. Deixa ele voltar aqui perto que vou “investigar” um pouco.
A cada gol que faziam, todos se abraçavam. Zezé já fizera dois.
O fôlego deles era incansável. Futebol, esconde-esconde, pega-pega, polícia e bandido. Não paravam um minuto.
- Tia Sônia, tia Sarah - elas correram para as crianças que gritavam.
No meio delas, Zezé estava caído. Respirava com extrema dificuldade. Tinha os olhos arregalados.
- Meu Deus Sarah. Procure ajuda. Chame uma ambulância.
Sônia tentou sentir-lhe o pulso. Estava muito fraco.
Um jovem, que se exercitava pelo parque, chegou correndo.
- Meu nome é Ricardo, sou médico. Deem-me espaço, por favor.
As crianças estavam assustadas.
- Ele não está respirando – iniciou o procedimento de massagem cardíaca.
- Alguém chamou pelo socorro?
- Sim. Já está vindo.
- Vamos garoto, reaja – suor escorria-lhe da testa.
A ambulância chegou. O médico e Sônia seguiram juntos. Sarah ficara para levar as crianças para casa.
Depois de um rápido trajeto, adentraram o Pronto-Socorro como um tornado. Uma equipe médica já os aguardava.
- Você fica aqui. Vou com eles - Ricardo entrou na ala reservada aos médicos.
A demora foi grande. Nenhuma notícia chegava sobre a situação de Zezé. Já se passara mais de uma hora. Ela sentia um peso enorme no peito.
Pensou em ligar para Sarah quando uma enfermeira saiu pela porta, seguida de um médico. Ricardo saiu logo atrás, mas não foi até ela. Sentou-se na primeira cadeira, abaixando a cabeça e cobrindo o rosto com as mãos.
O médico, paramentado, dirigiu-se a Sônia:
- Você é a responsável pelo garoto que veio do parque Ibirapuera?
- De certa forma, sim. Eu o encontrei lá, sozinho, eu estava com meus alunos, e ele ficou junto com o grupo. Como o Zezé está doutor?
- Nós fizemos tudo o que era possível para reanimá-lo, mas ele já chegou aqui em óbito. Meus pêsames.
Sônia sentou-se na cadeira próxima, aos prantos.
Passado o impacto inicial, Ricardo explicou-lhe que Zezé era portador de um problema cardíaco congênito, de extrema gravidade. Crianças com essa doença viviam em torno de quatro anos, no máximo cinco.
Eram quinze horas e trinta minutos quando o rabecão encostou nas escadarias para levar o corpo do Diretor.
Não sei se é verdade ou lenda urbana, mas dizem que todo começo de primavera, próximo ao lago no parque do Ibirapuera, ouvem-se duas vozes cantarolando: “Lá vem o Sol”.
FIM

Escrito por Luiz Amato parceiro do Blog Amor à Literatura e à Educação 

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